domingo, 4 de outubro de 2009

Com o tempo

Eu sou um copiador.

Nada do que escrevo ou faço é original.

Vivo repetindo isso a qualquer que me atribua uma sacada inventiva, uma jogada criativa.

Minhas palavras não são minhas; meus conceitos não me pertencem. A moral que considero e me esforço por seguir é uma cópia muito imperfeita e mutilada de exemplos que conheci ao longo da vida. A ética que adoto, aprendi de alguém.

Mas, doutra sorte, seja como for sei que a responsabilidade por todas as abstrações, atos e fatos é somente minha.

Houve um tempo em que eu me julgava bem melhor do que sou.

Na juventude as coisas se nos parecem assim: se há ética, somos os mais éticos, se há moral, somos os mais morais, se há capacidades, somos os mais capazes, se há virtudes, somos sua excelência.

Platão e Nietzche apresentaram pontos de vista diferentes sobre tais questões, em Hípias menor, Ménon, Críton e A Genealogia da Moral.

Para um, esses valores existem num modelo perfeito e não acessível no mundo sensível; para outro, são construções meramente sociais e, então, humanas, inventadas por espíritos mais fortes para a escravização dos mais fracos ao seu modelo.

O mais importante é que os valores foram objeto de suas meditações.

É bem verdade que a nova interpretação que faço de mim mesmo, nesses dias, não é exatamente produto de uma evolução do meu espírito, de um polimento que dei na alma ou porque me tornei mais humilde.

Sem essa! Não é nada disso!

A questão é bem menos filosófica. Eu apenas estou envelhecendo!

Nelson Rodrigues nos convidava ao envelhecimento. Ele dizia: jovens, envelheçam!

Acho que ele estava a nos dizer: vivam, não morram precocemente para que tenham tempo de se arrepender de seus preconceitos, das injustiças que praticaram. Vivam para construir os acertos sobre os enganos e contemplar tudo isso com um sorriso revelador de auto-recriminação que carreia o perdão, a desculpa de si!

Fiz cinqüenta e um anos em setembro, no dia 7.
Passou meio que desapercebido; não gosto de festas e pedi aos parentes e amigos mais próximos para que não alardeassem. É um dia que já tem festa demais.

Houve um tempo em que eu me julgava bem melhor do que sou, e se querem saber eu era mesmo, fisicamente.

As dores do corpo chegaram depois do que as da alma, é verdade, mas a contemplação das pisadas em falso na caminhada da vida só nos é possível, quando os olhos da alma vão se tornando mais lúcidos, na mesma medida em que os olhos do corpo necessitam de lentes.

No ano passado encontrei um velho professor (talvez nem tão velho!) com quem eu havia tido alguns problemas, por conseqüência de concepções diferentes de interpretação da realidade.

Que coisa importante, não?

O professor argumentava A. Eu refutava B. Eu o provocava debochadamente e ele me reduzia à minha posição de aluno impertinente.

Eu me acreditava investido de superioridade argumentativa que me credenciava ao exercício do emparedamento do outro, quando, na verdade, estava sendo apenas mal-educado e pretensioso.

Graças a Deus, no ano passado pude pedir desculpas ao professor.

Não sou melhor hoje, com melhores argumentos e capaz de melhores silogismos. Apenas posso enxergar os defeitos que me acompanham e tenho celebrado como qualidades, estupidamente, em gozo interior, e que o tempo e seus benefícios vêm se encarregando de esfregar na minha cara.

Platão nos advertiu quanto àqueles que odeiam os poderes estabelecidos apenas para que possam estabelecer os seus.

Posso ver melhor isso hoje. Muitas vezes protestei, asseverei mal, julguei outros incapazes de realizar o que eu realizaria, desqualifiquei seus discursos e suas ações. Verdadeiramente eu postulava a condição do outro, sua luz que eu não tinha.

Um dos meus maiores alvos na juventude foi o Coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira.

Há dez anos ele se foi, exatamente no dia 14 de setembro de 1999.

Um homem com qualidades, muitas qualidades e sem dúvida defeitos também.

Pouco consegui ver de suas qualidades na minha juventude. Posso vê-las hoje e não teria tempo para enumerá-las agora.

Há dez anos o Coronel Cerqueira se foi, assassinado fisicamente para viver na história, a memória registrada dos homens.

Fiz cinqüenta e um anos; se conseguir, na minha tarefa deste tempo, realizar um décimo das realizações do coronel Cerqueira como Comandante Geral da PMERJ, sairei feliz da jornada.

Continuo pensando diferente dele em muitas coisas; desta forma ele ainda vive para mim, mas tenho copiado um tanto das suas sacadas e seus construtos.

Agora nossa dialética metafísica está mediada pela madureza; a minha madureza que me faz enxergar seus motivos, seu trabalho, suas virtudes, sua luta.

Continuarei discordando dele em muita coisa; ou não.

Ainda pretendo envelhecer muito mais.