quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

'Bandido que não tem medo ainda não conheceu o Bope'

O texto abaixo foi publicado em 17 de Outubro de 2007, no jornal Estado de São Paulo, o "Estadão".

Trata-se de uma entrevista que concedi à jornalista Tahiane Stochero, que, aliás, reproduziu muito bem o que eu disse.

Coloco-o aqui por postagem, pois creio que possa servir à reflexão sobre o processo de pacificação que propomos ao Rio de Janeiro, pela descontrução das estruturas de poder do narcotráfico e sua ideologia de escravização e subjugação, com destaque para o papel do BOPE.

O artigo pode ser lido diretamente no jornal Web do Estadão, clicando-se no Título.



Tahiane Stochero, do estadao.com.br

"Quem tem que ter respeito pelo Bope é a população de bem. O criminoso tem que ter medo, muito medo. Bandido que não tem medo é porque ainda não conheceu o Bope. Quando ele conhecer, com certeza vai sentir medo. Por que? Porque ele vai perceber que a lei chegou para ele". A frase é do tenente-coronel Mário Sérgio Brito Duarte, ex-comandante do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), que está há 25 anos na Polícia Militar do Rio de Janeiro e entregou o comando da tropa de elite fluminense em janeiro deste ano.


Trecho da entrevista do ex-comandante do Bope



Para Mário Sérgio, o que faz o Bope ser considerado a melhor tropa de forças especiais de todo o mundo é o binômio treinamento e confronto. Segundo ele, o treinamento "é duríssimo, como qualquer treinamento de forças especiais do mundo todo, colocando o aluno em teste e em situações inusitadas o tempo inteiro, para que vejamos qual é o seu comportamento", como retratado no filme Tropa de Elite, em cartaz nos cinemas do país.


"O Brasil tem excelentes tropas de forças especiais em todos Estados e a própria tropa de forças especiais das Forças Armadas, que atuou no Haiti, é muito boa. A nossa diferença é que estamos em combate diariamente. Pode existir alguma tropa que treine tanto quanto o Bope. Mas há alguma dúvida de que a os forças especiais de polícia que mais atuam no mundo sejam os do Bope? Isso, com certeza, não tem. Nenhuma tropa de operações especiais em lugar nenhum. E é esse nosso diferencial. Entramos tanto em combate que vamos produzindo conhecimento e desenvolvendo novas técnicas. Aí a gente transforma tudo isso em guerra", explica o ex-comandante.




Tortura: 'Tudo pode acontecer. Mas não como regra, como exceção'



O coronel critica o filme de José Padilha, dizendo que ele é uma "caricatura irreal" do treinamento e que aborda a questão da tortura como sendo a essência do Bope, o que, segundo ele, "é uma farsa, uma covardia contra a instituição".


"As pessoas acham que o Bope age como mostra o filme, aquela tortura abjeta, o comportamento de violações, imolações, que aquilo ali é o comportamento padrão, a essência da unidade. Isso é uma mentira, uma farsa. É o que vai fazer vender alguma coisa. As pessoas gostam do mórbido, da violência pela violência. O autor optou pelo horror do filme, mas é uma farsa dizer que o Bope é assim como instituição. Esta coisa de você denunciar alguma coisa e ficar rico com a denúncia tem algo muito errado. Há uma dimensão ética nisso", defende ele.


No entanto, Mário Sérgio admite que as cenas de tortura mostradas no filme podem acontecer.


"Tudo pode acontecer, mas como acidente, e não como essência. Não como regra, mas como exceção, e burlando os dispositivos de controle. Sou contra tortura, e empalação é tortura. Há cena no filme do cabo de vassoura para simular isso. O filme está tentando disser que isso é uma prática rotineira do Bope, e não é".




Seleção e treinamento colocam aluno em teste, como no filme


O ex-comandante conta que o treinamento do Bope coloca o aluno em situações inusitadas o tempo inteiro, testando-o para observar o seu comportamento e reação em relação à sobrevivência individual e à do grupo.


"A gente dá o limão, a limonada quem faz é o aluno. Aquela cena da comida no chão no filme, as pessoas pensam que é para sacanear o aluno. Tem que entender que tem algo por trás. O treinamento é duro, é um teste de resistência. Mas tem que entender que isso tem um porquê no contexto da preparação. Ele vai entrar em confronto o tempo inteiro, deve estar pronto para tudo", explica Mário Sérgio.


A diferença entre o PM comum e o do Bope começa na decisão de ser forças especiais. Após uma bateria de exames físicos e psicológicos, o candidato tem toda a sua vida profissional e civil vasculhada. Os que sobram passam por dois cursos: um mês de treinamento de Operações Táticas, para, em seguida, fazer o curso de Operações Especiais, com duração de três meses e uma semana. De 400 candidatos, sobram 15. Neste mês, o Bope começou uma nova seleção: de 600 policiais, Mário Sérgio diz que devem restar menos de 20 no final.


"O homem do Bope tem que ter uma capacidade psíquica e física de ser forças especiais. Aquele instinto caveira no coração, de querer lutar até o fim. Ele sabe que ele está sempre nas piores condições possíveis de combate. Eles são homens de coragem com capacidade de enfrentar o crime. O diferencial está no amor pelo que faz, pela preparação extenuante, que esgota, que leva aos últimos limites do corpo e da mente. A partir de então, ele vai estar em uma guerra constante. E quando ele não está combatendo, está treinando", diz o coronel.




Rio pretende colocar polícia nos morros após "pacificação"



Atuando atualmente como superintendente da secretaria de segurança do Rio, Mário Sérgio é um dos homens que pensam a segurança pública do Estado. Ele diz que o governo atual resolveu enfrentar o tráfico, após anos de total inação das autoridades públicas, e que pretende colocar uma polícia permanente nos morros após a "pacificação".


"Nós vamos pacificar o Rio. Mas não vai ser com passeata e roupa branca. Isso fazemos há 20 anos e não dá em nada. E também fazer o que fazíamos até há pouco tempo atrás, de uma polícia invasiva, que só entra no local onde existe forte influência do narcotráfico e depois sai. O que tem que fazer é erradicar o narcotráfico de suas posições e junto, ou logo em seguida, entrar com forte apelo de melhoria da qualidade de vida e infra-estrutura social, o que vai ser feito com o PAC. A população precisa enxergar que é possível ter inclusão social e melhoria na qualidade de vida sem o apelo do narcotráfico".


O coronel compara a situação nos morros cariocas à ação do Exército no Haiti, dizendo que "não adianta pacificar uma favela e colocar um efetivo permanente lá se, de alguma maneira, o Estado não propiciar melhores condições de vida à população. É como no Haiti, não adianta pacificar se não houver melhoria no país. Porque um dia as Forças Armadas vão sair e volta toda a situação de barbárie que estava".


As gangues cariocas comparam-se a pequenas frações do Exército, diz Mário Sérgio, que fazem patrulhas para defenderem sua área de atuação e expandirem seu território. "Há nos grupos, além do objetivo do comércio de drogas, uma autofagia, um sentimento de pertencimento de grupo, de identidade. A cada instante surgem novas frações do grupos que introjetaram a expressão guerra, e agora nós estamos nesta guerra e fazendo o tráfico recuar".

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Ao Complexo do Alemão, o nosso amplexo

O artigo abaixo foi publicado no jornal O Globo no dia 26/09/2007 com o título Liberdade para o Alemão.
Eu o escrevi após uma ação conjunta da PM com a Polícia Civil, que resultou na morte de 19 criminosos da facção comando vermelho.


Liberdade para o Alemão


Nos últimos vinte anos a escalada da violência perpetrada por criminosos envolvidos com o tráfico de drogas no Rio de Janeiro, tem preocupado tanto o cidadão comum, quanto estudiosos, governantes, jornalistas e agentes da lei.


Os efeitos do descontrole histórico da segurança pública são tão dramáticos, que já não podemos dizê-los próprios de tal campo.


Uma observação atenta ao que tem se passado em nosso Estado, com destaque para as áreas onde estão localizadas as favelas, irá revelar que a evolução do medo abarca alguns vetores comuns aos “conflitos armados”, semelhantes aos ocorridos em países e territórios envolvidos em guerras internas, com significativo número de mortos entre contendores e inocentes.


No caso carioca, cuja cidade até o início da década de oitenta ainda apresentava uma regular normalidade no seu aspecto segurança, uma combinação explosiva de fatores foi determinante para a proliferaçào de criminosos em nova faceta.


A vulgarização da cocaína, conquistando mercados nas camadas mais pobres da população, fermentada pela chegada dos fuzis e outras armas de guerra, promoveu, duplamente, grande lucro e poder para as quadrilhas que se formavam.


Em pouco tempo, desavenças internas nos bandos deram origem a dissensões e disputas por áreas rentáveis, ocasionando conflitos armados que exigiam pronta resposta dos organismos policiais, em defesa dos moradores, acuados entre o fogo cruzado dos marginais.


Entretanto, despreparadas e desautorizadas, as polícias nunca conseguiram empreender campanha efetiva para prevenção do caos que se avizinhava, concorrendo para que a segurança pública servisse muito mais como ingrediente para confeitos políticos sedutores em época de eleição, e não como objeto real das preocupações dos gestores, exercendo, assim, por inação, papel definitivo para transformá-la num macro-problema.


Por anos, seu enfrentamento, aceitando o desafio de desgastes e danos colaterais, foi postergado, e, um sem número de experimentos para controle da criminalidade foi testado a partir de fórmulas excêntricas, idealizadas por intelectuais ancorados em curiosa episteme sociológica, de tudo explicar pelas desigualdades sociais.


Assim, chegamos aos nossos dias mergulhados numa desordem aterradora, cuja solução só será possível pela realização de esforços conjugados dos poderes legais e legítimos, e da população, a partir de uma visão realista da gravidade da situação e dos ingredientes psicossociais que lhes compõe o quadro.


Primeiramente, é preciso reconhecer que os bandos possuem instrumentos de guerra, como fuzis, granadas e minas; também, que sabem se conduzir como pequenas frações de infantaria, o que inclui “conduta de patrulha”, evacuação de feridos e uso de radiocomunicação; que se estabelecem estrategicamente no terreno, dominando-o e mantendo o controle da população; que utilizam o terror como forma de intimidação, assassinando, fria e barbaramente policiais, adultos e crianças inocentes, imolando, esses últimos, em ônibus que incendeiam, com indiferença bestial.


Além disso, nos últimos anos desenvolveram uma odiosa identidade cultural que inclui: músicas louvando terroristas internacionais e seus feitos; assassínio - com tortura e secção de membros do corpo dos “inimigos”, ainda vivos, para alimentar animais famintos; homicídio de desafetos e “suspeitos” em pneus incendiados, macabramente apelidados por “micro-ondas”; uso de expressões, gestos e palavras provocativas com identidade de grupo, francamente reveladas pelos sites de socialização da internet, principalmente o Orkut, onde se exibem ao lado das cabeças decapitadas dos inimigos.

Sem dúvida, vivemos um conflito urbano armado.


É menos do que uma guerra convencional, mas é muito mais do que um simples quadro de ordem pública que possa ser tratado com instrumentos tradicionais.


Para enfrentá-lo, precisamos bem mais que aplicar modelos de policiamento ostensivo importados do exterior, pois não condizem com nossa realidade.

Se quisermos modificar, definitivamente, essa realidade, devemos aceitar o desafio sem receios, e libertar, ainda que com o “uso da espada”, a população das garras do crime, como estamos fazendo no Complexo do Alemão, livrando-a do horror.


Se quisermos ter a consciência tranqüila, livre do arrependimento comum aos que se escondem em falácias sedutoras, com as quais camuflam inépcia e incompetência, temos que ousar a liberdade, ainda que chorando a dor dos que ofereceram a própria carne ao encontro do aço, como fizeram os policiais que lá tombaram nesses últimos meses, regando com sangue e honra o solo, para a semeadura da paz.


O Complexo do Alemão será liberto. Ele pertence ao Rio. Ele pertence ao Brasil.


Mário Sérgio de Brito Duarte
Tenente Coronel PM
Ex-Comandante do BOPE

Publicado em em 29/06/07Caderno Opinião - O Globo