domingo, 31 de dezembro de 2006

Quem és tu?

A prisão de mais de setenta Policiais Militares do Rio por envolvimento com traficantes de drogas e outros criminosos, chegando, em alguns casos, a integrarem seus bandos e quadrilhas, deixou estupefato o carioca, já tão assombrado e receoso da ação de maltas e magotes marginais que, sem detença, surgem aqui e acolá, promovendo medo difuso.

Remunerados para defender a população, homens que um dia, diante do pavilhão nacional e de seus familiares, juraram, solenemente, defender a sociedade com o risco da própria vida apresentam-se, agora, como seus algozes, ao mesmo tempo em que, ao se fazerem bandidos, cavam profunda ferida na instituição que lhes acolheu como irmãos de ideais e de lutas.

Atarefada em espremer tais furúnculos, a PM acaba silenciando ante o alarido aproveitador dos “especialistas”, esses falastrões que jamais arriscarão seus pescoços para conduzir quem, ou o que quer que seja, nos nevoeiros das crises e seus perigos imprevisíveis; esses embusteiros que surgem nos momentos dramáticos como “arautos da verdade”, fazendo crer que são eles mesmos as autoridades detentoras do melhor juízo e maior envergadura moral, para avaliar qualquer questão.

Sondando-lhes, todavia, a carreira, vamos encontrar, como únicas marcas de suas passagens despreocupadas nas corporações de origem, as suas digitais nas maçanetas das autoridades as quais serviram com falaciosa lealdade, transmutando o brilho que proporcionaram aos puxadores das portas que abriam sorridentes, em oportunidades de ascensão profissional sem mérito e sem honra, fazendo, assim, da profissão um patíbulo de vergonha diante de pares e companheiros. E, por mais absurdo, no entanto, investem-se como juizes das mazelas alheias, lançando dardos contra tudo e contra todos, indiscriminadamente, atingindo ora os “aloprados da farda”, o que é justo, ora inocentes e trabalhadores de louvor requerido.

Ninguém duvida, é bem certo, que essa tempestade de opróbrios que desaba sobre nossa Polícia Militar, por conseqüência do desatino criminoso de alguns dos seus homens, possa proporcionar limpeza eficaz no corpo doente, mas se, e somente se, um rigoroso inventário que descortine alternativas para tão terrível mal, for realizado tempestivamente.

Oportuno é, no entanto, desmascarar a impropriedade desses comentaristas autodeclarados “especialistas em segurança pública”, sempre a espreita de escândalos e crises, como urubus a procura de coisa pútrida; esses “policiólogos” abstêmios da práxis policial por inaptidão ou medo, que jamais ombrearam com sua tropa em momentos de dificuldades, quando a carne se torna alvo potencial para o fogo dos fuzis e estilhaços de granadas criminosas. Néscios, ainda assim alardeiam-se legítimos desconstrutores de edifícios construídos com suor e sangue honrados.

Não se pretende, é bom esclarecer, impedir que se levantem vozes contra ignomínias como as que cometeram os “criminosos travestidos de policiais”, como na fala do Coronel Hudson, Comandante Geral da PMERJ. Injuriar-se contra toda forma de tergiversação criminosa, empreendida, principalmente, por quem deveria combater o delito é legítimo e impostergável, mas, fazê-lo sem os limites de uma autocensura que reprima a vaidade e a cupidez, é alimentar-se na tigela da irresponsabilidade.

Assim, ao deparar-me com os comentários do Coronel da PM paulista, José Vicente Filho, cujo prestígio como conhecedor da própria Instituição é questionável, especialmente sua história como policial; vendo-o proferir juízos e desferir acusações contra a PMERJ com verborragia insana e ofensiva, julgo oportuno salientar que, ao contrário do que disse ao “Globo” no último dia 16, atribuindo à exceção a regra, folclore para nós, PMs cariocas, é se fazer passar, como ele se faz, pelo que não é: LEGÍTIMO.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2006

O Trabalho Dignifica o Homem


O título acima, com o qual inicio esta postagem, tem por efeito situar o sentido da palavra “trabalho” com vistas à análise que farei da matéria veiculada pelo Jornal Extra, do Caderno Especial publicado no dia 24 de novembro de 2006, intitulado “ROTAS DE FUGA”.

Digo “situar” porque, a rigor o predicado não conceitua a expressão, mas permite analisar algumas definições.

Com efeito, trabalho, cuja origem etimológica remonta ao Latim Tardio, se refere a um instrumento de tortura, o tripalium, formado com três paus onde, em regra escravos, sofriam suplícios. O executor das torturas, ou o carrasco era, por assim dizer, o “trabalhador” e, por conseguinte, o torturado “trabalhado”.

Antropólogos provavelmente dirão (quem sabe estejam certos) que as torturas infligidas nos nossos dias por policiais desviados dos seus compromissos (e ingênuo aquele que acreditar que tais abstrusas e infames práticas do comportamento humano individual foram suprimidas totalmente), se reproduzem no discurso dessa forma (“trabalhar” o preso), por decorrência de uma reprodução cultural milenar.

Estudiosos de outros campos do conhecimento humano, como a filosofia, darão outras explicações. Numa visão socrática o filósofo argumentará pela hipótese das reminiscências, gerador do fenômeno último.

Ouvindo um desses teratogênicos mentais que utilizam a prática espúria da tortura, para obter confissões, talvez ouçamo-lo dizer que “considera um ato comum do seu mister profissional, pois, como trabalhador, trabalha em algo, ou trabalha algo, no caso considerado o corpo e a mente de quem extrai confissões”.

A palavra trabalho também foi odiosamente utilizada pelos nazistas, durante a segunda guerra mundial, quando, na entrada do campo de concentração de Dachau, perto de Munich, eles escreveram “O trabalho liberta”, em alemão Arbeit macht frei, dando bem a dimensão de quão impróprio pode ser tomado um termo digno, para fins escusos.

Desprezando tais significados e explicitando a dimensão ética na expressão trabalho, que pretendo invocar neste texto, passo a comentar a matéria:

A primeira página do caderno é uma espécie de prelúdio. Em trinta e oito linhas, com cores bem contrastantes (preto e vermelho), o jornal apresenta os nomes, ou apelidos, de quarenta e cinco pessoas mortas em confronto com as polícias, declarando, sem oposição da dúvida, haverem sido assassinadas (grifo meu) por policiais.
Com o título de página “Em 230 vidas, um retrato da guerra que atinge milhões”, “O Extra” inicia a matéria, realizada com base num trabalho de pesquisa de uma ONG chamada “Observatório de Favelas”, que teria sido feito num período de quase dois anos, entre 2004 e 2006.

O objetivo primordial é esclarecido nas primeiras linhas, e revela haver produzido conhecimento sobre o “cotidiano do tráfico”: as atividades, as relações, as motivações, o destino dos seus partícipes e as soluções possíveis para o problema.
Ao longo da oito páginas o jornal desfila um bem arrumado conjunto de argumentos apresentados como estudo. A matéria feita a partir do olhar da ONG, está assentada numa base que é, com efeito, uma indisfarçada construção ideológica, que envolve as chamadas “pesquisas sociológicas”.

Tal ideologia, formatada a partir da premissa que confere às classes sociais desfavorecidas economicamente, a singular qualidade de propiciadora, por irresistível, de violadores da lei na consumação de crimes como o narcotráfico armado, dando-lhe um subliminar aspecto de “justiça”, vem diluída no discurso dos idealizadores do projeto e na disposição dos autores da matéria em corroborá-la, já que fazem confundir a pesquisa com jornalismo em si.

Embora haja explicitado que os pesquisadores eram, por laços sanguíneos ou de relações sociais ligados aos traficantes “pesquisados” ou, ainda, ex-criminosos mesmo, e ter evidenciado que a pesquisa se realizou nos próprios espaços onde são realizados os negócios ilegais, se travam os combates violentos nas disputas de territórios e ocorrem enfrentamentos das forças policiais, a entidade pesquisadora apenas se limita a declarar que tais requisitos são “fundamentais para o estabelecimento do vinculo de confiança entre pesquisador e pesquisados”.

Ora, é lógico que tal assertiva culmina por propiciar alguns questionamentos ao leitor mais percuciente, fundamentais à crença na confiabilidade dos dados coletados, na hipótese única de não serem obtidos por processo analítico. Vejamos:

a) Por que parentes e amigos de um público-alvo de entrevistas foram entendidos como as pessoas mais indicadas para fazê-las se, cientifica e deontologicamente, deveriam ser consideradas as menos indicadas, a fim de não viciar a pesquisa?

b) Por que tais características foram consideradas essenciais na escolha dos pesquisadores se, considerado o indispensável e rigoroso estranhamento, - difícil até para antropólogos calejados – deveriam ser as mais intensamente dispensáveis, já que as identidades culturais entre pesquisadores e pesquisadas empurrariam os primeiros ao endosso do discurso do tráfico?


Ninguém duvida, é lógico, que traficantes e outros bandidos são tratados com violência pela polícia, como assegurei acima, ao refutar a tortura como método do “que quer” que seja.
Mas, parentes e amigos de criminosos, e ex-criminosos mesmo, pessoas com afinidades e laços psíquicos que asseguram identidade e unicidade social, traduzirão, com a requerida isenção, o que de fato viram e assistiram?

Será que nos relatarão - por que sabemos serem práticas comuns no narco-mundo - as mutilações, esfolamentos, empalações, torturas e outras imolações que assistiram ou souberam?
Será que relatarão a colocação de pessoas em fogueiras, nos chamados “fornos micro-ondas”, que seus olhos assistiram?

Será que incluirão nos seus “diários de campo”, os espancamentos até a morte, e as violações sexuais contra jovens meninas e senhoras das comunidades, por seus “nativos” pesquisados?
Será que informarão das emboscadas contra policiais, e do assassínio frio e cruel dos agentes da lei em serviço ou na folga?

Será que algumas dessas hediondas práticas efetuadas por parentes, amigos e ex-comparsas, estão relatadas no trabalho de pesquisa?

Será que foram reveladas no pretenso “cotidiano dos traficantes?”.

Devemos desconfiar que não.

E, pior, a ação dos comparsas na consecução do crime, na perpetração do banditismo descabido, violento, covarde e sem limites, foi, com o desprezo a toda carga emocional requerida pela dimensão ética que o termo requer, e olvido completo aos reclames racionais que a expressão possa suscitar, chamada de: TRABALHO.

Os traficantes, na lógica apresentada pela ONG, formam uma nova classe trabalhadora.
Os distribuidores, varejistas ou atacadistas das substâncias proibidas, cujo comércio ilícito promove toda sorte de violência e escravidão, devem ser entendidos como qualquer que vende sua força de trabalho, já que é assim que fazem os proletários e assalariados, em busca de remuneração, nas plagas capitalistas. É o “Capitalismo das Ruas”, permite concluir a festejada pesquisa.

Isto é uma falácia. Absurda, subliminar, sub-reptícia, abjeta e ignóbil.

A ONG “Observatório de Favelas” considera a formação de bandos e quadrilhas para o tráfico de drogas, uma forma de trabalho.

Sem nenhuma cerimônia, sem nenhum constrangimento, com ares de cientificidade, a ONG apresenta-nos seu trabalho onde o pesquisador é o próprio “nativo”, ou “igual ao nativo”, sem estranhamento ou ferramentas para profilaxia de relatos contaminados, e, sutilmente, impõe um modelo novo, um conceito revolucionário: o Trabalhador-Traficante.

Não é de hoje que aplausos para as contestações e violações da ordem são observados nos chamados “círculos intelectuais”.

De manifestações artísticas a insuspeitos trabalhos acadêmicos, a formulação dionisíaca, “apagando toda a mancha de pecado” (leia-se responsabilidade por atos e construções) subverte, a cada dia, os princípios da razoabilidade.

Traficante não é trabalhador, é criminoso.

Não nos deixemos enganar.