sexta-feira, 29 de junho de 2007

Liberdade para o Alemão


Nos últimos vinte anos a escalada da violência perpetrada por criminosos envolvidos com o tráfico de drogas no Rio de Janeiro, tem preocupado tanto o cidadão comum, quanto estudiosos, governantes, jornalistas e agentes da lei.

Os efeitos do descontrole histórico da segurança pública são tão dramáticos, que já não podemos dizê-los próprios de tal campo.

Uma observação atenta ao que tem se passado em nosso Estado, com destaque para as áreas onde estão localizadas as favelas, irá revelar que a evolução do medo abarca alguns vetores comuns aos “conflitos armados”, semelhantes aos ocorridos em países e territórios envolvidos em guerras internas, com significativo número de mortos entre contendores e inocentes.

No caso carioca, cuja cidade até o início da década de oitenta ainda apresentava uma regular normalidade no seu aspecto segurança, uma combinação explosiva de fatores foi determinante para a proliferaçào de criminosos em nova faceta.

A vulgarização da cocaína, conquistando mercados nas camadas mais pobres da população, fermentada pela chegada dos fuzis e outras armas de guerra, promoveu, duplamente, grande lucro e poder para as quadrilhas que se formavam.

Em pouco tempo, desavenças internas nos bandos deram origem a dissensões e disputas por áreas rentáveis, ocasionando conflitos armados que exigiam pronta resposta dos organismos policiais, em defesa dos moradores, acuados entre o fogo cruzado dos marginais.

Entretanto, despreparadas e desautorizadas, as polícias nunca conseguiram empreender campanha efetiva para prevenção do caos que se avizinhava, concorrendo para que a segurança pública servisse muito mais como ingrediente para confeitos políticos sedutores em época de eleição, e não como objeto real das preocupações dos gestores, exercendo, assim, por inação, papel definitivo para transformá-la num macro-problema.

Por anos, seu enfrentamento, aceitando o desafio de desgastes e danos colaterais, foi postergado, e, um sem número de experimentos para controle da criminalidade foi testado a partir de fórmulas excêntricas, idealizadas por intelectuais ancorados em curiosa episteme sociológica, de tudo explicar pelas desigualdades sociais.

Assim, chegamos aos nossos dias mergulhados numa desordem aterradora, cuja solução só será possível pela realização de esforços conjugados dos poderes legais e legítimos, e da população, a partir de uma visão realista da gravidade da situação e dos ingredientes psicossociais que lhes compõe o quadro.

Primeiramente, é preciso reconhecer que os bandos possuem instrumentos de guerra, como fuzis, granadas e minas; também, que sabem se conduzir como pequenas frações de infantaria, o que inclui “conduta de patrulha”, evacuação de feridos e uso de radiocomunicação; que se estabelecem estrategicamente no terreno, dominando-o e mantendo o controle da população; que utilizam o terror como forma de intimidação, assassinando, fria e barbaramente policiais, adultos e crianças inocentes, imolando, esses últimos, em ônibus que incendeiam, com indiferença bestial. Além disso, nos últimos anos desenvolveram uma odiosa identidade cultural que inclui: músicas louvando terroristas internacionais e seus feitos; assassínio - com tortura e secção de membros do corpo dos “inimigos”, ainda vivos, para alimentar animais famintos; homicídio de desafetos e “suspeitos” em pneus incendiados, macabramente apelidados por “micro-ondas”; uso de expressões, gestos e palavras provocativas com identidade de grupo, francamente reveladas pelos sites de socialização da internet, principalmente o Orkut, onde se exibem ao lado das cabeças decapitadas dos inimigos.


Sem dúvida, vivemos um conflito urbano armado. É menos do que uma guerra convencional, mas é muito mais do que um simples quadro de ordem pública que possa ser tratado com instrumentos tradicionais.

Para enfrentá-lo, precisamos bem mais que aplicar modelos de policiamento ostensivo importados do exterior, pois não condizem com nossa realidade.

Se quisermos modificar, definitivamente, essa realidade, devemos aceitar o desafio sem receios, e libertar, ainda que com o “uso da espada”, a população das garras do crime, como estamos fazendo no Complexo do Alemão, livrando-a do horror.

Se quisermos ter a consciência tranqüila, livre do arrependimento comum aos que se escondem em falácias sedutoras, com as quais camuflam inépcia e incompetência, temos que ousar a liberdade, ainda que chorando a dor dos que ofereceram a própria carne ao encontro do aço, como fizeram os policiais que lá tombaram nesses últimos meses, regando com sangue e honra o solo, para a semeadura da paz.

O Complexo do Alemão será liberto. Ele pertence ao Rio.

Ele pertence ao Brasil.

Mário Sérgio de Brito Duarte
Tenente Coronel PM
Ex-Comandante do BOPE

Publicado em em 29/06/07
Caderno Opinião - O Globohttp://www2.senado.gov.br/bdsf/bitstream/id/81730/1/noticia.htm

O Estado é Maior

Solicitei do jornalista Gustavo de Almeida, do JB, sua permissão para reproduzir o artigo adiante.

Imperdível! Confiram!


A gente dificilmente percebe a História – este é um defeito, inclusive, de nós, jornalistas. Acostumados ao dia-a-dia maçante, às milhares de promessas não cumpridas, ao discurso sempre repetitivo das autoridades, estamos acostumados a escrever para o peixe da feira: aquele papel vai virar embrulho e tudo vai voltar à normalidade.Normalidade, no Rio, quer dizer o seguinte: gente pobre sem direito a segurança porque a polícia não entra nas favelas. Porque os DPOs ou são arregados ou estão em constante ameaça. Resultado? O poder paralelo, o traficante, armado de fuzil, G-3, antiaérea, granada, impõe sua vontade, invade a casa, destrói a família, corrompe a criança, estupra a mulher e mata o pai. Ou expulsa todo mundo, como na primeira história que postei aqui no Santa Bárbara e Rebouças, há um ano, no dia 13 de junho.Recordando; um ex-técnico da Telerj tem a casa, que é perto da favela, invadida por traficantes, é ameaçado e vira funcionário do tráfico, é obrigado a grampear telefones para evitar que os moradores façam denúncias. Eu disse que é obrigado? Não, porque ele pôde fugir, e fugiu.Mas com milhares de cariocas não é assim: o traficante armado manda, coloca a arma na cara e o jeito é obedecer. Entretanto, o maior prejuízo mesmo não é nem com essa coação armada, e sim com a expansão de uma “cultura do tráfico”, do pobre que leva vantagem, da sensação de grupo social que as facções criam. Em suma: “Eu sou do Comando Vermelho, eu tenho amigos que matam, portanto sou visível e existo”. Ergo sum.Uma cultura daninha que vai se espalhando, por meio de gírias e linguajares, criando no carioca uma tolerância abjeta ao narcotráfico e seus subprodutos. Esta, atualmente, é a nossa História. O Rio virando uma outra coisa – não às casas simples com cadeiras nas calçadas, com flores tristes e baldias, não à orla de Tom & Vinícius, mas sim uma propagação virótica de um comportamento e linguajar da violência, um “já é” para lá e um “é nós’ para cá, como se nossos objetivos existenciais mais profundos fossem ter armas, seqüestrar pessoas, impor a força, impor a violência.Enfim, chego ao ponto: o dia 27 de junho de 2007 será tão guardado na história como o 13 de junho de 1994 para a História do Rio. Se no dia de 1994 acabou simbolicamente o poder paralelo paternalista com a morte de Orlando da Conceição, o Orlando Jogador, pode-se dizer que, com o enfrentamento do tráfico no Alemão, em 2007, no mesmo mês de junho, o delegado PF José Mariano Beltrame começou a acabar com o próprio poder paralelo.É claro que este não acabou, e nem vai acabar neste governo. De jeito nenhum. Mas foi dada a largada oficial, a ruptura ousada. A Secretaria de Segurança arcou com os prejuízos políticos e com todos os desgastes possíveis de uma ação violenta com o intuito único de dizer: o Estado é maior que vocês. O povo organizado, formal e que trabalha é maior do que vocês. Vocês vão se enquadrar – parar de seqüestrar, de ameaçar os outros pelo telefone, parar de assaltar, de atirar, de matar. O Estado é maior do que vocês.Beltrame, gaúcho de Santa Maria – me corrijam se não for esta a cidade – é como um legítimo estrangeiro, um ser não crente naquele estado de coisas. Quando digo não crente estou me referindo a alguém incapaz de aceitar passivamente a frase “Ah, é assim mesmo”. O olhar estrangeiro do delegado PF José Mariano Beltrame foi fundamental para a insistência praticamente louca (em termos políticos) em se manter no coração do Comando Vermelho. Para Beltrame, não há como uma favela ter quatro armas anti-aéreas de guerra, armas militares. Não há como uma favela ter 15 mil cápsulas de fuzil 762 (como foi apreendido mês passado). Não há como uma favela ter snipers.A realidade dele, de gaúcho de Santa Maria, não assimila uma loucura destas. Daí a insistência no Complexo do Alemão, mesmo debaixo do já previsível e normal fogo da OAB, da Alerj, das comissões todas – pessoas que trabalham honestamente, honradamente, mas que nada fazem para impedir que outros sejam vítimas de seqüestro-relâmpago ou extorsão telefônica, por exemplo.O delegado PF José Mariano Beltrame provavelmente deve ser esquecido, na correria do dia-a-dia, assim como este dia 27 de junho. Ambos, injustamente. Afinal, foi inaugurada uma era, a do Estado Maior.
Gustavo de Almeida