sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

A dor nossa de cada dia

Finalmente a dor policial-militar foi motivo de notícia.
É verdade que como fato diário os meios de comunicação, principalmente os jornais impressos, veiculam eventos que envolvem policiais militares e policiais civis como vítimas.
A espetacularização da violência é uma estratégia segura para atração de leitores, e os jornais não podem deixar de faturar a vitimização dos agentes da lei que ocorre quase diariamente no Estado do Rio de Janeiro.
A dor policial militar, que poderia ser a dor policial civil, ou simplesmente a dor policial, a qual me refiro com um "finalmente" para iniciar o texto, é a dor passada a fenômeno social, tamanha sua recorrência: dor desprezada, dor menoscabada, dor não percebida pela indiferença crônica da sociedade em relação às corporações policiais e seus agentes, no que lhes atinge o corpo físico e o mecanismo psíquico propiciadores de suas existências.
A dor policial militar noticiada, tema de capa da Veja Rio, da semana que se iniciou no dia 21, é um conjunto de desgraças, de imolações, de martírios, de eventos fatais envolvendo centenas de dedicados profissionais que, quase ao desamparo, acabam deixando viúvas, órfãos, irmãos e pais inconsolados com a separação derradeira de seus amados nesta vida que antecede àquela outra, a que nos juntará todos para ser ou para não-ser.
Lamentei que a matéria exibindo o destino de seis famílias atingidas pelo trágico, não tenha sido publicada na parte de veiculação nacional, mas apenas no encarte destinado ao Estado do Rio.
O Brasil precisa saber o que se passa com os policiais cariocas.
Precisa saber que ser policial no Rio de Janeiro é contabilizar muitos amigos mortos ao longo da carreira. É ver crescer a galeria de fotos no saguão dos quartéis, batizada por Patrulha da Saudade, aumentar a cada ano.
O país precisa saber que ser policial aqui é manter uma expectativa sombria de não ver os filhos crescerem, não ver os netos chegarem e de não se alcançar a “reforma” ao término da carreira. É a pura incerteza da vida, pela incerteza de tê-la plenamente vívida e vivida.
O Brasil precisa saber que para o policial do Rio de Janeiro a morte ronda e espreita sem descanso, sem trégua.
A Veja acordou para nosso problema, só que ela é uma revista “reacionária”.
Claro, são os que se intitulam “progressistas” que dizem isso.
É preciso ser "reacionário" no Brasil para se interessar por uma categoria profissional como a PM, ou a PC.
Duvido que a Carta Capital, a Caros Amigos, a Fórum e talvez até a Piauí, publicariam algo assim.
Elas assentam o edifício de suas ilações jornalísticas no toco assegurador das ideologias revolucionárias com fundamento nas lutas de classe.
Por esse prisma, as forças policiais devem ser entendidas como integrantes da superestrutura odiosa que atenta todo tempo contra as bases populares da sociedade, criminalizando-as.
Com silogismo elementar e a partir de tal premissa, mais do que se extrair deduções pode-se fazer induções: os progressistas não se interessam pelos dramas dos policiais e de suas famílias e, seguramente, jamais se interessarão, pelo menos enquanto nosso regime não se transformar numa república socialista, bolivariana ou qualquer coisa similar.
Carta Capital, Caros Amigos, Fórum, Piauí são revistas "progressistas" e a Veja é uma revista "reacionária".
Interessar-se pelos percalços e pelo sofrimento dos familiares dos encarregados de fazer cumprir a lei, é uma atitude reacionária.
Interessar-se pelas dificuldades das mães viúvas, frente à necessidade de alimentar, educar e vestir filhos desamparados, órfãos de policiais, é uma atitude reacionária.
A matéria da Veja não me fez ficar feliz porque não posso ficar feliz em meio a tanta dor dos meus iguais, integrantes da família policial militar. Mas devo admitir que me trouxe certo alívio.
Nem tudo está perdido, esquecido, não estamos tão sós.
Se é verdade que os próceres do Ministério da Justiça ainda não conseguiram vislumbrar o horizonte de gravidade que há duas décadas atravessa o Rio de Janeiro, talvez o que necessitem para apreender o fenômeno de forma mais aguda seja justamente o conhecimento de conteúdos de realidades que exibam o paroxismo dos nossos dias, quando segurança pública se confunde com guerrilhas, trabalho policial se confunde com campanha militar e área de policiamento se confunde com teatro de operações.
Não há conteúdos de realidades mais expressivos que os rostos e as lágrimas dos familiares que perderem seus entes queridos, policiais por profissão, no árduo trabalho de se fazerem policiais comunitários, mediadores de conflitos, parteiros, salva-vidas, pontas de patrulha, psicólogos de ocasião e tantos outros papéis que lhes foram exigidos em vida, sem reconhecimento, sem distinção.
Reafirmo que não acredito, e nem espero, que os “progressistas” da mídia façam algo que contrarie os postulados ideológicos que lhes guiam a consciência e imprimem curso às construções.
A Veja é uma revista “reacionária”.
Ela escreveu suas páginas com as lágrimas de sangue dos familiares de PMs assassinados.
Ela está dizendo que eles, nossos mortos e nossos vivos, são dignos de respeito.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

E os blogs, ó !

Vamos reconhecer: as dores, os problemas, os dilemas, as necessidades dos Policiais Militares, isso não é do interesse de ninguém, não é mesmo?
Não dá IBOPE!!!
O que fomenta a curiosidade, a vontade de “ficar por dentro”, de saber de detalhes são aquelas situações desqualificadoras, destrutivas da imagem individual - de quem se fala - e da imagem coletiva da PM.
Ora, vamos ser francos, é assim não é? Estou exagerando?
Não, não estou não, querem ver?
Vou dar um exemplo; vai ser um só, mas emblemático.
No último dia nove, a Fundação Oswaldo Cruz fez o lançamento do livro Servir e Proteger: condições de vida, trabalho e saúde dos policiais militares, do Rio de Janeiro, como anunciei aqui.
Fui ao lançamento. Uma festa bonita, com a PM homenageada.
O livro resultou de uma investigação sociológica realizada entre 2005 e 2007, na Corporação, com autorização do Comando Geral.
Por se tratar da “PM falando”, ou seja, seus Oficiais e Praças dizendo de suas dificuldades, seus dramas, eu mesmo cheguei a compartilhar um certo otimismo com as cientistas do CLAVES, com as quais mantive contato todo tempo. Achávamos que o lançamento receberia a atenção mesmo da mídia engajada, aquela que simula isenção para não parecer militante anti-Estado; afinal, era um trabalho inovador. Nunca cientistas de humanidades haviam se aproximado de nossa Corporação para auscultá-la dessa forma.
Verdade que a FIOCRUZ havia tentado, ainda no início da década, realizar a pesquisa, mas a PM se recusara com receio de ver suas tripas (sociais) à mostra.
Querem saber, eu teria feito o mesmo.
Eu não conhecia a FIOCRUZ até 2005, para além da visão do seu “Castelinho” e da história da “Revolta da Vacina”, ou seja: eu conhecia um pouco sobre a história do homem que propiciara uma rebelião popular no Rio de Janeiro, há um século, porque a população preferira acreditar nas “notícias”, no senso comum, nos mitos, nas historinhas, nos boatos e não nas ciências. Eu sabia algo sobre o homem que dera o nome à fundação e tinha gravada na memória a imagem do prédio histórico da FIOCRUZ.
Eu negaria também a pesquisa como fora negada a primeira vez.
Para nossa sorte, o Comandante Geral a autorizou em 2005, e ela foi realizada.
Não só nós, PM, ela pesquisou, mas à PCERJ, no que resultou o “Missão Investigar”; isso alguns anos antes.
Mas, voltando, a mídia foi avisada, convidada, convocada, chamada, requisitada para o lançamento com direito a coquetel e tudo e só vi por lá a TV Brasil.
É verdade que o “Estadão” “mandou ver” e fez uma matéria superextensa sobre o livro.
Mas, e nossos jornais?
Nada.
E nossos blogueiros profissionais de polícia?
Nada
Vasculhei os blogs. Procurei com cuidado. Vi com calma. Revi.
Nada, nenhum blog falou do livro, da pesquisa, dos resultados. Uma mísera linha.
Mas procurem ler neles as coisas ruins!Ou aquelas com as quais podem mobilizar a opinião pública contra a instituição.
Procurem a notícia da absolvição do PM do 6º BPM. Vejam o que está escrito.
Procurem postagens relacionando as comemorações dos sessenta anos da declaração dos direitos humanos, com ações de PMs violando direitos humanos (sem referência às violações que os PMs sofrem, é lógico).
Procurem notícias sobre a morte do ex-PM/ex-marido-global. Vejam o que falam. Vejam quantas informações, quantos comentários de leitores.
Vejam quantas informações sobre a ação da PM por ocasião da “rememoração” do AI-5.
Vejam se não vão encontrar nos blogs pelo menos uma noticiazinha que exiba um PM fazendo algo errado, qualquer uma que seja, a “ca....dinha” da semana, que possa reforçar o coro Hay PM? Soy contra, mesmo que o PM tenha recebido o necessário látego da lei.
Mas, sobre o livro, sobre a pesquisa, sobre o PM e seu ser-sacrifício, ser-incompreensão, seu ser-mágoa, seu ser-indignação, não, sobre isso: SILÊNCIO.
Perdôo um jornalista blogueiro: Gustavo de Almeida.
Perdôo o Gustavo porque estou certo de que não foi por indiferença. Ele agora está numa revista e as revistas não receberam resumos executivos da obra, até onde sei. E também ele não está obrigado a ler meu blog, onde poderia encontrar a notícia sobre o lançamento da obra.
Os jornais, todavia, sabiam e os blogs profissionais por certo.
Os “blogs profissionais de segurança e polícia”, embotados na vontade de servir seus leitores com “sangue de aroma agradável” dos PMs cujas reputações caçam, implacavelmente, e sacrificam ao seu público como rituais religiosos ultrapassados, mas redivivos, fizeram ouvidos moucos às nossas súplicas.
Não importa.
Sigamos em frente procurando fazer o melhor; mesmo caindo, levantando e pagando por cada erro.
Somos uma Corporação de Bravos.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Missão Prevenir e Proteger

O Centro Latino-Americano de Estudos da violência e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz – CLAVES/FIOCRUZ – lança hoje, às 19:00h, no Espaço Rio-Carioca, Rua das Laranjeiras, 307, o livro Missão Servir e Proteger: condições de vida, trabalho e saúde dos policiais militares, resultado de um profundo estudo realizado na nossa PMERJ entre os anos de 2005 e 2007.

Por essas coisas do destino, eu estava no comando do 22º BPM quando fui informado sobre a pesquisa e que minha Unidade seria uma das pesquisadas.

Confesso que fiquei receoso. Até então todo meu contato pessoal com o “mundo das ciências sociais” estava restrito à pós-graduação que fizera na UFF, em 2003, para atendimento ao Curso Superior de Polícia, e, seguramente, não fora um contato dos melhores, pelo menos no início: o relativismo epistêmico radical, espécie de verdade protocolar inerente àquela comunidade científica, me causara uma impressão melancólica, impelindo-me a entendê-la uma ciência de axiologia pendular.

Mas, eu já estava dois anos mais velho e menos disposto a polêmicas emocionais. Recebi o CLAVES sem receios e facilitei o seu trabalho como pude, atendendo não apenas as ordens superiores, mas satisfeito e com uma certa intuição de que o resultado final seria muito importante para nossa amada PMERJ.

Agora, em 2008, fiquei novamente envolvido com o trabalho; desta vez como consultor da pesquisa, a convite do CLAVES.

A professora doutora Cecília Minayo, responsável pela obra, me presenteou com a “orelha”. O Capitão Paulo Roberto Storani Botelho, Mestre em Antropologia e Caveira da bicentenária, fez o prefácio.

De minha parte posso garantir que NÃO HÁ NADA NA OBRA QUE DESMEREÇA A PM E SEUS INTEGRANTES, OU SEJA, NÓS MESMOS!
Ela só nos revela nossa humanitude.

Ficam aqui minhas congratulações e agradecimentos à socióloga Maria Cecília Minayo e às psicólogas Ednilsa Souza e Patrícia Constantino, de sua equipe, pelo trabalho grandioso que realizaram com persistência incomum e qualidade inigualável.

Abaixo transcrevo a “orelha” do livro:

O difícil diálogo entre as ciências sociais e as corporações policiais parece advir, prevalecentemente, de preconceitos cultivados nos círculos restritos dos “maiorais” dessas atividades e vão, muito lentamente, se esvaecendo, na medida em que o tempo avança em benefício da concórdia e tolerância que integram a idéia do bem.

Invoco a sucessão de momentos e fatos nomeando-os aqui por tempo, na consideração que é esse o grande facilitador do aperto de mão respeitoso que abre espaço para o abraço fraterno entre entidades outrora em conflito, quando se punham em campos antagônicos que as ideologias constroem e limitam, com linhas demarcatórias do exclusivismo da verdade.

Menos por produção de saberes conflituosos, e mais pela posição que ocuparam no contexto político e social dos tempos de força e intolerância, vencidas há pouco mais de vinte anos, policiais e cientistas de humanidades, principalmente, permitiram-se alimentar com ressentimentos que lhes obliteravam a razão, mas que não sobreviveram à ação do tempo e seus benefícios.

A seu turno, a democracia plena restabelecida em nosso país, que, como um ensinamento de Gandhi “nos permite ver a outra face da realidade e a não acusar adversários de idéias como inimigos apenas por não partilharem do nosso critério”, cumpriu seu papel de mediadora espiritual dos conflitos entre diferentes legítimos.

Foi, e é, essa democracia que trazemos em nossa alma como uma secreta desconfiança de um valor universal, a porta mágica que tem permitido, justamente, a pluralidade e a relativização das verdades defendidas por cada um, a partir de suas subjetividades.

Quando as ciências humanas se aproximam das polícias e dos policiais com claros sinais de boa vontade e respeito às suas existências, abrem portas, conquistam corações e mantêm intacta sua credibilidade pela manutenção dos métodos e critérios científicos que lhes norteiam o caminho da isenção e do rigor, fazendo com que todos ganhem: - É o bem comum - costuma-se dizer.

Assim, vejo este profundo, sistemático e vigoroso estudo científico realizado por pesquisadores da maior seriedade e competência, esses produtores do conhecimento na inigualável Fundação Oswaldo Cruz, sob a batuta da respeitadíssima doutora Maria Cecília de Souza Minayo, como um grande abraço na família Policial Militar. Ao auscultar o corpo social da nossa amada Instituição, descobrindo e revelando-nos nossas patologias físicas e psíquicas, conseqüência de um cotidiano de muitas lutas, a Ciência nos envolve num amplexo que afasta qualquer receio.

A presente pesquisa intitulada Missão Prevenir e Proteger que perscruta as condições de vida, trabalho e saúde dos Policiais Militares do Rio de Janeiro, realizada por: Maria Cecília de Souza Minayo, Ednilza Ramos de Souza, Patrícia Constantino, Simone Gonçalves de Assis, Adalgisa Peixoto Ribeiro, Mirian Schenker, Liane Maria Braga da Silveira, Cleber Nascimento do Carmo, Thiago de Oliveira Pires, com apoio técnico de Marcelo da Cunha Pereira e normalização bibliográfica de Danúzia da Rocha Paula é, para a Ciência, uma nova e preciosa fonte de conhecimento e referência; para a PMERJ, uma messe de esperança e uma oração para seus aflitos.
Mário Sérgio de Brito Duarte
Coronel do Quadro de Combatentes, da PMERJ

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Sobre a Síndrome Irresponsabilizadora Fetal Umbrática - SIFU

O dia de ontem foi marcado por fatos que indubitavelmente estão ligados aos históricos problemas de violência e criminalidade do Estado do Rio de Janeiro.

Vou me deter apenas naqueles que receberam maior veiculação pelos jornais. Se pretendesse falar de todos os eventos violentos teria que abrir um leque de considerações que ultrapassaria, em muito, a dimensão onde tenho situado meu alvo de perscrutações e reflexões, ou seja, o narcotráfico e seu poder.

Essa decisão teleológica não é casuística nem oportunista. Seu fundamento está no exercício exaustivo da atividade policial propiciadora de observações aproximadas, e participação teórico-operacional na busca constante da promoção da tranqüilidade pública e da paz social do povo fluminense.

Assim, os eventos de ontem me asseguram o quanto este artigo é oportuno, considerando o apelo midiático de seus acontecimentos, atraindo a atenção geral.

O primeiro, e mais triste, muito mais triste, infinitamente mais triste, está marcado de sangue inocente. Uma criança é atingida mortalmente por um disparo na porta de sua casa, na favela da Baixa do Sapateiro, onde, ladeando-lhe, situa-se o 22º BPM – o Batalhão da Maré – unidade operacional da PMERJ a qual tive a honra de comandar por um ano e quatro meses, período no qual, enlutado, sepultei uma dúzia de valorosos policiais militares.

Ali, mais uma vez, outra dessas desgraças que procuramos evitar a todo custo enluta a população sedenta de paz, justiça e liberdade, valores naturais da existência humana, tão irrefreáveis no espírito ao ponto de encontrarmo-los desfraldados como bandeira de ideais até por grupos avessos à lei e à sociabilidade legítima.

E, novamente, como enfrentei ao longo do meu comando, nas vezes em que inocentes pereceram vitimados nos embates desse conflito urbano armado que atravessa o Rio há vinte anos, as acusações sobre a autoria do crime recaem sobre policiais, atribuindo-lhes uma deliberada intenção em promover a dor; quando muito, para menos, uma indiferença sobre os riscos de cometê-la.

É claro que se foram os policiais, que lhes caiam sobre as costas o látego da lei.

Mas, e se não tiverem sido os agentes da lei os responsáveis pela morte?

E se o infortunado menino tiver tido sua vida subtraída por um dos muitos (muitos mesmos) traficantes que ali gastam seus dias em maquinações tenebrosas e disputas sangrentas de mercado?

É lógico que, para a família, o conhecimento da origem do disparo não aplaca a dor da perda, não obstante trazer algum alívio ao espírito saber o criminoso exposto à lei.

Mas, agora, independente do “culpado da ação”, já há um culpado por inferência ideológica.

Algo ruim ocorreu? Foi a polícia – garantirão alguns, sempre.

Independentemente de uma solução futura do caso que aponte em direção diversa, a PM já é a culpada. “Foi um tiro certeiro (intencional) de uma corporação atrapalhada que não sabe trabalhar em comunidades”, segundo uma versão.

Todavia, é possível que tenha sido outra a origem do tiro. Claro que é possível.

Ali, como já disse, traficantes de drogas de uma facção se postam diuturnamente em franca oposição às leis do país, e, por conseqüência, ao Estado Democrático de Direito.

Subjugadores da vontade individual e coletiva daquelas comunidades da Maré fazem valer suas vontades, transformando em verdade toda e qualquer versão que lhes interesse e favoreça.

Não obstante serem uma minoria, pequena e poderosa minoria em meio a um oceano de moradores sintonizados nos valores do bem, operosos, produtivos, cidadãos, mantêm acorrentadas essas almas a um odioso anel abstrato que lhes inflige valores e signos.

Essas criaturas dedicadas ao mal-comum que, é bem certo, têm-lhes a incentivar a inserção e permanência no crime toda sorte de situações desfavoráveis - da família desestruturada ao não pertencimento de grupo social destinatário de atenção e afetos - não podem se escusar, de forma absoluta, de suas responsabilidades nas escolhas, justamente pelo mesmo motivo: a imensa maioria dos integrantes das suas comunidades se encontra na mesma situação e, nem por isso, opta pela vida criminosa.

Mas ontem, ali perto, retomando um discurso que parecia ter abandonado há tempos, o presidente Lula, falando a milhares de pessoas no Complexo do Alemão em evento do Programa de Aceleração do Crescimento, afagou carinhosamente a cabeça dos criminosos inocentando-lhes de toda conduta, dando o tom de uma interpretação “neomarxista” de desigualdades sociais e ausência de Estado.

O Presidente, diante de uma população que melhor do que qualquer outra conhece bem a força tirânica dos narcotraficantes, e sonha um dia se ver livre da submissão às suas vontades, os absolveu de toda responsabilidade por suas escolhas e atos, e os promoveu, por redução, de sujeitos detentores de vontade e razão à espécie de cera passiva, absorvedora inerte das formas anti-sociais que lhes determina o feitio a as representações.

Lula, nosso Presidente da República, re-inaugurou o estilo argumentador-psicanalista fora de moda por caducidade, aquele que atribui a culpa do erro voluntário, do “gozo, do deleite no mal consciente” a algum trauma abonador, tipo: “a ausência da teta da mãe”. E, aí, a mama faltante e culpada é o Estado, o mesmo Estado que, paradoxalmente, faltou durante todo o tempo àqueles milhares de jovens que ladeiam os criminosos, que dividem com eles os espaços das favelas sem se lhes assemelharem em atitudes e escolhas.

O dia de ontem foi um dia tristemente marcante.

Um inocente morreu.

O Presidente celebrou o culto de remissão do “criminoso não arrependido”.

E quanto a polícia?

Bem...

Não se vai dizer para alguém:
- Meu...sifu.