Cheguei cedo ao imponente prédio da principal casa legislativa do estado. O evento estava marcado para se iniciar às dez, mas uma hora antes eu já estava por lá, rondando-lhe os corredores, admirando-lhe a beleza e seu acervo artístico mais visível, pensando sua história que se impõe aqui e acolá, em cada quina de corredor, em cada parede acolhedora de ideários e polêmicas.
Vinte minutos antes da sessão, encontrei o deputado Flávio Bolsonaro que me convidou a acompanhá-lo no cafezinho, numa copa improvisada onde já se encontravam os deputados Marcelo Freixo e Paulo Ramos.
Para quem pensa que as disputas políticas promotoras dos acalorados debates da ALERJ, em especial as fomentadas por vigorosas convicções ideológicas de origem em Marx ou Adam Smith, que levam para cantos diferentes da arena democrática o PSOL e o PP, são suficientes para transformarem em “inimigos privados” jovens idealistas como Freixo e Bolsonaro, aconselho a saberem mais sobre esses nossos contemporâneos e importantes parlamentares fluminenses.
Nossos deputados são adversários na maior parte de suas intenções e convicções, mas são cavalheiros, cordiais entre si, e, ainda posso arriscar, talvez amigos na vida privada.
Passei alguns minutos descontraído, ali, com eles.
Paulo Ramos, um major disciplinado, tratou de apresentar-se militarmente a mim (coronel), que, igualmente atento aos protocolos da melhor fidalguia, respondi-lhe: - Apresentado Major! Como vai vossa excelência, deputado?
Verdadeiramente me relaciono muito bem com os três parlamentares e também com o Molon, que não estava no café, mas iria participar da sessão.
Minutos depois eu já estava na sala que serviria de palco (no melhor sentido) para o debate, e a descontração logo se transformou em tensão; nossas fisionomias já não apresentavam a mesma jovialidade, e eu divisava rostos bem conhecidos entre o pessoal que acompanharia a “peleja” na platéia.
Para que meus leitores entendam melhor o motivo daquela sessão pública, é conveniente conhecer acerca dos seus atores-debatedores: o primeiro que relaciono (embora tenha chegado atrasado) é o professor-doutor Jose Ignácio Cano Gestoso, mais conhecido na mídia e nos meios acadêmicos como Ignácio Cano; a segunda pessoa é o desembargador Sérgio Verani, com quem, salvo engano de memória, tive a oportunidade de debater, há alguns anos, a descriminação da maconha no auditório da ACADEPOL; a terceira é a advogada-professora-doutora, (ou doutora-advogada-professora, sempre me enrolo no uso desses títulos) Roberta Duboc Pedrinha, da universidade Candido Mendes e a última a professora (mestra, doutora, pós-doutora, pós-pós etc.) Patrícia Rivero, do IPEA.
Coube ao desembargador Verani iniciar o debate. Embora ele tenha seguido um rumo - digamos - esperado, (com exceção dos representantes do estado ali presentes como: eu, minha equipe, o Bolsonaro, uma delegada e um delegado da PCERJ, qualquer que se encontrasse na sessão iria se colocar em oposição ao nosso trabalho), foi dele a iniciativa, mesmo involuntária, de fazer com que não saíssemos do evento com um sentimento de impertinência geral. Verani, ao anunciar que a questão das mortes de criminosos que confrontam policiais, deveria ser alvo de uma discussão franca, me permitiu decidir que, quando chegasse minha vez de falar, iria começar com tal consideração.
Após, falou Ignácio Cano. Discorreu sobre a violência policial, citou números. Garantiu que há um desequilíbrio entre mortos policiais e marginais no Rio, usando como fundamento do seu discurso um argumentum ad verecundiam fundamentado nas considerações de um especialista americano (não me recordo se policial); teceu comparações, elogiou a polícia militar de Minas Gerais por não promover o assassínio de civis (eufemismo para inocentar bandidos em armas), lançou desconfianças sobre a lisura da polícia civil na análise de ocorrências com mortes pela PM e estendeu suas desconfianças ao ministério público e aos magistrados. Finalizou, o insigne professor espanhol, levantando a bandeira da prisão em qualquer caso para policiais envolvidos em confrontos com morte, mesmo em legítima defesa e em pleno uso do direito da força, nos revezes durante os serviços, quando têm que vencer a resistência armada de facínoras por opção.
Falaram ainda a professora Pedrinha, que manifestou suas desconfianças sobre as ações policiais no Complexo do Alemão e a professora Rivera, acho que uruguaia, não tenho certeza, que apresentou parte do estudo que realizou no IPEA sobre violência e território, abordando a questão dos homicídios numa consideração com a proximidade de moradia entre assassinos e vítimas, além de outros aspectos que seria extenso demais falar aqui.
Bem, então chegou a minha vez.
Eu estava muito à vontade.
O doutor Verani me dera um presente e lá fui eu.
Ele nos concitara a falar francamente e eu comecei por aí.
Ora, falar francamente significava considerar, logo, que parte – a maior parte – do que falaríamos, estaria assentada nas nossas idiossincrasias e ideologias, e não no simulacro científico que antecede os discursos, na apresentação das credenciais de oradores: - Ouviremos agora o doutor disso, a doutora daquilo, a pós-doutora daquiloutro!
Era preciso, de imediato, expor o carnegão ideológico escondido sob a epiderme das nossas intenções, antes que alguém pensasse que toda aquela vermelhidão fosse só exposição demasiada às luzes da ciência.
Peguei três ou quatro expressões recorrentes nos discursos dos professos das lutas de classes como motor da história e explicação do mundo, que haviam sido ditas, para fazer descer os enunciados ao solo das relações “coisa e juízos”, propondo, nisso, a validação de uma regra de debate com fundamento na hipótese de enunciação da verdade.
Havia se passado uma hora de oratória política dissimulada e isso me incomoda mais do que passar pelo maracanã em dia de jogo do flamengo.
Olhei no rosto dos meus interlocutores e pude sentir-lhes certo descontentamento.
Alguns cientistas de humanidades às vezes nos lembram os bêbados. Nunca devemos dizer-lhes de suas condições entorpecidas pelo marxismo viciante.
Não é fácil convencer convencidos.
Não pretendo isso.
Fui àquele local porque era minha missão.
Aquelas pessoas que prestigiavam o debate formam um círculo ideológico.
Lá estavam representantes do Justiça Global, da Rede Contra Violência, do Tortura Nunca Mais etc.
Se é ilusão acreditar que qualquer consideração, mesmo fundamentada na mais pura verdade e assentada em valores universais e absolutos, como o direito de um não agressor à vida, mas em sentido contrário às suas teses, lhes mudará a disposição e o entendimento, não posso, todavia, me furtar de me apresentar na arena das polêmicas dos juízos quando isso me é exigido num contexto de legalidade e legitimidade.
Cano, Pedrinha e Rivera são ideólogos. Nada mais legítimo. Não precisam camuflar o que lhes é direito.
Não é crime, não é vergonha.
E também não cometo crime quando lhes aponto isso; no máximo cometo uma indiscrição.
Eles têm todo direito de se apresentarem ideologicamente, filosoficamente, como eu faço, sem precisar apelar para “quanti” e “quali”, querendo se mostrar isentos.
Chega de balela!
Eles reclamam dos altos números de confrontos e eu também. Que saudades da época em que não havia fuzis nas mãos dos traficantes, e nós, policiais, usávamos revólveres e algemas para prendê-los.
Agora meus amigos, o buraco é mais embaixo.
Agora são milhares de granadas e uma ideologia regulando tudo, a ideologia de facção, com sua subcultura de ódio e dominação se espraiando pelo país.
Não desejamos autos de resistência, senhoras e senhores doutores, desejamos tranqüilidade pública e paz social, para nós, para cada cidadão fluminense e para todos que aqui transitam, como nuestros Hermanos espanhóis e uruguaios que vivem, trabalham e se divertem ao som do nosso samba.
Não podemos aceitar essa tese desproporcional à nossa realidade semelhante aos conflitos armados de baixa intensidade. Encarcerar, de imediato, os policiais que se envolverem em confronto com mortes, numa área conflagrada como a nossa, é uma sandice.
Como mobilizar uma tropa para se meter em meio a uma guerra entre facções inimigas - como aconteceu recentemente na Maré quando pereceram, em combate, um soldado, um sargento e um tenente, para livrar a população da loucura do lumpesinato que os senhores eufemisticamente chamam de “civis” - se eles tiverem que ficar presos após o cumprimento de suas missões legais, legítimas e razoáveis?
Lutar contra os excessos sim; contra autos de resistência forjados sim, contra assassínios premeditados sim. Nisso estamos juntos.
Mas, se curvar às manobras ideológicas travestidas de ciência com simulacro de sentimentos humanistas, não!
Vamos continuar tendo uma discussão franca sobre isso.
Estou à disposição.
Ps: aproveito para agradecer aos deputados Paulo Ramos, Molon, Freixo e Bolsonaro pela acolhida respeitosa e franca. O FairPlay necessário a contendores modernos tem sido a marca de suas disposições políticas. A eles o meu muito obrigado.