Não sei quantas vezes já respondi a esta pergunta.
Durante a coletiva com a imprensa na Secretaria de Segurança, no dia 14, logo após a entrada do BOPE no Morro dos Macacos, um dos jornalistas instou-nos sobre isso.
Havia duas dezenas de profissionais da mídia no auditório, com suas câmeras, gravadores e blocos de anotação.
Foi possível ler na expressão de seus rostos certa frustração, quando eu o Dr. Beltrame respondemos negativamente ao entrevistador que, muito provavelmente, aguardava ansioso uma chance para a digressão do tema que pautava a coletiva:
- Eu não assisti, ou, ainda não assisti – respondi algo assim.
Eu tenho alguns motivos para não ter visto o filme que ainda vou ver, e o primeiro tem a ver com as minhas intuições sem nenhuma configuração filosófica ou científica.
Tem a ver com as minhas secretas intuições, expressão que colhi do imenso repositório pedagógico de um renomado professor francês do século XIX, discípulo de Pestalozzi, para explicar o inexplicável sob certa consideração da razão.
Tropa 2 foi rodado com a insubstituível colaboração da PM.
Lembro-me do dia que recebi o cineasta José Padilha no meu gabinete.
“Zé”, como não se incomoda de ser chamado na informalidade, procurou-me para dizer de sua necessidade de ajuda para o Tropa 2.
Queria dar à sua obra um sentido que fosse por todo tempo identificado na realidade, e isto incluía evitar ao máximo os simulacros estéticos dos cenários físicos, utilizando-se de lugares reais para as tomadas: quartel do BOPE, stands de tiro, viaturas blindadas e o Quartel General.
Foi uma tarde agradável. Conversamos principalmente sobre a polarização que o Tropa 1 havia causado nos discursos intelectualizados da esquerda e da direita, pouco ininteligíveis ao expectador menos aparelhado à compreensão do ideológico, ainda que não construído com tal fim.
Desde o primeiro momento de nossa conversa, eu acenei para Zé Padilha que poderia ajudá-lo, sim, desde que eu soubesse exatamente o rumo que pretendia imprimir à sua obra.
Eu sabia de antemão que Zé Padilha não iria fazer um reclame, um comercial que conduzisse o público à falsa impressão de uma Polícia Militar idealizada como expressão de excelência de Corporação.
Zé não faria panfletagem da PM, seria ridículo; a PM está longe da perfeição e ninguém em sã consciência, mesmo sendo seu integrante, pode pretender coisa assim.
Ainda que lutando todo o tempo para tornar-se melhor, sua caminhada segue aos tropeços, caindo e levantando muitas e incansáveis vezes para vencer os desafios da cultura interna que naturaliza estruturas de poder, ao mesmo tempo em que luta para consolidar os valores validados como regra de conduta do espírito, que devem animar o corpo institucional com sua ética, sua moral e seu ethos.
Zé Padilha me assegurou que seria um filme muito bom, que eu me aquietasse.
Capitão Nascimento já seria coronel e teria um filho “maconheiro”.
Os mesmos corruptos do filme anterior estariam presentes, com uma participação mais refinada na “sacanagem”, agora envolvendo políticos com jornada nas milícias.
Aquele foi o primeiro contato que tivemos e que seria sucedido de mais dois ou três, sempre em espaços da PM.
Algo que Zé Padilha deixara claro já na primeira conversa, é que não pretendia produzir algo que conduzisse o público a conclusões falseadas sobre o que ele mesmo pensava da Polícia Militar.
Uma obra de ficção que aborda fatos reais, tal como Guerra ao Terror, tal como Dia de Treinamento, tal como Full Metal Jacket têm o poder de conduzir os espectadores a conclusões supra-reais com reflexos para as relações futuras destes com as entidades representadas.
Filmes precisam romancear os personagens. Os heróis devem ser atormentados; é preciso passar a idéia de que eles estão sozinhos e jamais permitir conclusões como, por exemplo,de que no Rio de Janeiro dos "dias atuais" há gente tentando mudar; que há novos ventos soprando.
Zé Padilha me assegurou que não intentava fazer juízo depreciativo sobre nosso pessoal, ou algo que pudesse transparecer que a instituição fosse constituída de uma maioria de corruptos e criminosos.
Ele disse mais; disse que sabia que tratava com pessoas sérias, e que por isso qualquer coisa que pudesse ser repassada como contrapartida pela utilização de recursos da PM, não violaria a linha que circunscreve a dimensão que havíamos adotado como solo sagrado de nossas obrigações éticas.
Combinamos, então, que ele faria uma visita à Diretoria de Assistência Social da PM (DAS), onde provavelmente, teríamos a melhor chance de encontrar destino justo e adequado para a contrapartida sugerida por ele mesmo.
Muitos de nós consideramos a DAS uma espécie de campo de redenção, onde podemos pelo trabalho resgatar tempo precioso de nossas vidas, gasto com reclamações desproporcionais à dimensão dos problemas aventados.
São tantos os necessitados de ajuda, e em graus tão paroxísticos em suas demandas, que somente uma compreensão excedível da simples missão profissional pode proporcionar o funcionamento daquelas engrenagens, promotoras de algum conforto e assistência.
Só mesmo pelo exercício constante das faculdades positivas da alma, se torna possível o atendimento das exigências ininterruptas de policiais que padecem de males físicos, psicológicos, materiais, tendo em vista os escassos recursos que a instituição pode destinar à faina oculta aos olhos da sociedade.
Assim, vislumbramos a oportunidade benfazeja para o recém-criado projeto Renascer, Servir e Proteger, destinado à re-incluir socialmente pelo esporte, Policiais Militares com necessidades especiais, na sua maioria cadeirantes vítimas de confrontos armados.
Inferimos que o grupo poderia receber algum tipo de benefício legal e legítimo, à escolha de Zé Padilha, que englobaria o engajamento de patrocinadores com sua orientação ou, até, numa hipótese mais solidária e desprendida, sua participação (do filme) na construção de uma piscina para a equipe de natação que os cadeirantes estavam iniciando com tantas expectativas positivas, rompendo um círculo de insulamento em parte voluntário, em parte compelido pelas circunstâncias.
Zé Padilha foi à DAS; estava acompanhado do “Capitão Nascimento”.
Eu cito Wagner Moura desta forma porque fica difícil pensá-lo interpretando uma personagem criada para si mesmo, naquelas circunstâncias.
Eu não quero pensar que ele foi exibir-se um Wagner que não é. Um Wagner capaz de simular se interessar pela dor intraduzível à linguagem cênica, paradoxalmente não registrada naqueles olhares cheios de júbilo dos cadeirantes, funcionários e familiares, emocionados com sua presença.
Naquela tarde não registrada pelas lentes sempre atentas da imprensa ansiosa por notícias do filme, Zé Padilha encheu a todos de esperança, por verem-no uma espécie de “deus” re-criador de sonhos, enquanto Nascimento os permitia pensarem-se verdadeiramente uma Tropa de Elite.
Zé Padilha acenou positivo para muitas coisas. Daria uma justa e sincera contrapartida para o definitivo retorno à vida daqueles que derramaram sangue honrado nas lutas que ele levaria para a tela.
Eu, e cada um dos que participamos daquele encontro, guardamos a boa impressão das falas e dos gestos convincentes dos nossos visitantes. E olhem que isso já tem um bom tempo!
Sempre soubemos que no futuro haveria performances, que haveria luzes, câmera e multidões, sempre soubemos que o filme exigir-lhes-ia representar e simular, mas por um bom tempo mantivemos a sensação de que estivéramos frente a frente com o avesso da face pretendida no simulacro da arte.
Eu ainda não assisti Tropa 2, mas não porque receio encontrar na mimese brilhante, a verdade, e sim porque desconfio que possa encontrar o falseado no engodo usado para a sedução perversa, e gostaria de estar melhor preparado para isso.
Já me disseram que Nascimento propõe o fim da PM, numa sessão da Assembléia Legislativa em dado momento do filme.
Faço um apelo ao Capitão Nascimento: que ele diga ao Zé Padilha e ao Wagner Moura para correrem até a DAS antes que isso aconteça, pois lá eles esqueceram pelo menos um capítulo da obra de suas vidas que seria conveniente resgatarem.
Vai que alguém pense que é coisa de pouco valor.